O movimento Hizmet de Fethullah Gülen e o bem comum - uma perspectiva do Reino Unido
O movimento Hizmet (serviço, em turco) associado ao professor turco Fethullah Gülen [nascido em 1941] faz parte do emergente "Islã Europeu", que tem sua própria diversidade na expressão da identidade turco-muçulmana. O movimento atua globalmente em educação, mídia, diálogo inter-religioso, finanças e trabalho de ajuda humanitária. Na Grã-Bretanha, o Hizmet tem sido particularmente ativo no diálogo educacional e inter-religioso e contribuiu significativamente para o bem comum nos últimos vinte anos. Hizmet é uma expressão viva da afirmação de Mevlana Rumi de que a fé no Deus Único está longe de ser "uma Caravana do Desespero" (Citlak & Bingul 2004, 8).
Este artigo está sendo escrito em um momento de estresse nacional no Reino Unido e na Turquia. Neste último, após a tentativa de golpe de julho de 2016, os seguidores do Hizmet enfrentaram uma pressão extraordinária, a maioria ilegal, do governo do AKP. Sem fornecer nenhuma evidência, o governo reivindicou que o Hizmet - um movimento até então benigno, pró-social, pró-democrático e apolítico - planejou e realizou a tentativa de golpe. Milhares de cidadãos suspeitos de associação ao movimento Hizmet foram presos, exilados ou demitidos de suas profissões pelo governo do AKP. Uma análise crítica dessa hostilidade é essencial.
No Reino Unido, o mesmo período foi marcado por um referendo divisivo sobre a participação do país na União Europeia, quatro ataques terroristas em Manchester e Londres e um incêndio residencial em Londres, que matou mais de 80 vidas, incluindo as de muitos imigrantes.
Ao olhar para o Reino Unido, é preciso examinar o papel principal que comunidades de fé como o Hizmet tiveram na união de sociedades divididas pelo racismo, islamofobia, desigualdades econômicas e enfraquecimento dos serviços públicos. Líderes nacionais e locais cristãos, muçulmanos e judeus se uniram para estabelecer uma plataforma comum de acordo e respeito mútuo. O Hizmet, com seus centros educacionais e de diálogo inter-religioso nas principais cidades inglesas, como Londres, Birmingham e Manchester, ofereceu espaços e oportunidades de engajamento mútuo, bem como entendimentos baseados no Alcorão sobre a dinâmica de culturas nacionais religiosa e socialmente plurais.
O Islã, uma tradição rica e forte que prospera em muitas sociedades diversas, é uma fé viva e permitiu que gerações de muçulmanos abordassem desenvolvimentos sociais, justiça e questões corporativas e individuais de identidade e ética. Com base no Alcorão, Hadith, Sunnah e fiqh, novos movimentos sociais islâmicos formaram constantemente novos espaços públicos nos quais novas identidades e estilos de vida poderiam surgir, não por menos no Reino Unido.
Algumas das melhores expressões do Islã ocorreram sob as circunstâncias religio-sociais mais pluralistas, onde o discurso intelectual, as realizações educacionais e a harmonia social floresceram. Entre os pensadores islâmicos contemporâneos que professam se interessar em interpretar fontes históricas e praticar sua fé de maneira "islamicamente correta", Fethullah Gülen é o pai espiritual do que provavelmente é o movimento turco-islâmico mais ativo do final do século XX e início do século XXI .
Ao considerar o Hizmet, logo se percebe que Fethullah Gülen não é um inovador com uma teologia nova e única nem um revolucionário. Sua compreensão do Islã é orientada dentro do ramo principal conservador, e seus argumentos estão enraizados nas fontes tradicionais do Islã. Eles estão em uma linhagem representada por al-Ghazali, Mevlana Jalal ud-Din Rumi, Bediuzzaman Said Nursi e em companhia de Muhammad Asad e Muhammad Naquib Syed Al-Attas e Seyyed Hossein Nasr.
Esse movimento - um dentre muitos em um espectro que varia de grupos cívicos pró-sociais a facções agressivas - é distinto ao enfatizar instituições educacionais de alta qualidade, tanto na Turquia quanto internacionalmente. As escolas foram fundadas e mantidas por cidadãos turcos em países em desenvolvimento, bem como em países poderosos e economicamente desenvolvidos, como os EUA e o Reino Unido. Os membros do Hizmet também organizaram muitas conferências acadêmicas nos últimos 20 anos, atraindo painéis internacionais de acadêmicos e pesquisadores para explorar questões de exploração e cooperação humanas.
Enquanto os membros do Hizmet têm organizado essas escolas e conferências, o atual governo do AKP adotou uma versão agressiva do "Islamismo Político", que não admite as expressões de um Islã benigno que contraste com ele, e que afirma seu estilo autocrático demitindo acadêmicos, professores, juízes, servidores públicos, e militares, entre outros, em um esforço para consolidar seu poder sobre o estado turco. Isso levou a um "estado em exílio" para muitos suspeitos de associação com a abordagem do Hizmet.
Quais mecanismos, no entanto, permitiram que esses elementos extremistas emergissem e tomassem um poder como esse? Vale a pena examinar, para que possamos entender completamente o valor que o Hizmet traz para o mundo.
A defensividade é patogênica
No mundo complexo e globalizado de hoje, a migração e o interculturalismo se tornaram a norma. Em muitos países, não existe religião oficial, compartilhada e “pública”.
Em uma análise sociológica do porquê altas taxas de religião rígida em países desenvolvidos como o Reino Unido e outros estados europeus, Steve Bruce formulou o conceito de "transição e defesa cultural", explicando como a defensividade pode reforçar tipos extremos de religiosidade, incluindo aqueles que advogam violência (Bruce 1996, p. 165, 197.) Uma questão significativa aqui é a falta de um centro ocidental do Islã, o que torna necessário que os muçulmanos estudem no exterior. Cesari e Ramadan afirmam fortemente que um Islã ocidental independente deve emergir para resolver problemas associados à radicalização (Cesari 2004 e Ramadan 2004) O movimento Hizmet está em uma posição privilegiada para oferecer esse modelo de islamismo.
A maioria central de uma religião freqüentemente usou da pressão social para controlar extremistas. Se a massa central de crentes diminui em número, o crescimento de facções literalistas e extremistas provavelmente continuará sem controle.
Literalismo sectário
Historicamente, sempre houve uma disputa entre tradições monoteístas e outras tradições de fé, assim como essa disputa existiu no meio delas. Enquanto as religiões abraâmicas afirmam o monoteísmo, resistem ao desvio e se opõem às divindades construídas, seus valores centrais enfatizam a abertura à diversidade. O literalismo textual, no entanto, tornou o novo monoteísmo politicamente sectário, cismático e agressivo, enquanto as leis sociais e morais foram consideradas inferiores por essa nova ênfase. Esse desenvolvimento anunciou um novo tipo de ordem política inevitavelmente hostil a todos os outros ideais cívicos (Fenn 2009, 135). Essa irracionalidade teve e tem consequências graves e mortais.
Tipicamente, literalistas acríticos pretendem purificar “falsos crentes” do meio deles, ou separar-se deles. É por isso que o literalismo pode levar à violência e geralmente leva a cismas (Harris 2004, 409). Ser literalista é destruir a maioria da profundidade e emoção de qualquer religião escrita. A única vantagem da atitude acrítica do literalista em relação às escrituras é que ela atende à ordem simplista de desejo mental. Essa é a estratégia e a mentalidade da liderança do AKP e sua perseguição a pessoas devotas influenciadas pelo Hizmet e Fethullah Gülen.
Desdenhando o pluralismo
Os extremistas impõem códigos morais rígidos de acordo com suas crenças e, às vezes, como durante os períodos medievais cristãos, suprimem violentamente os dissidentes. Eles desprezam o pluralismo como anormal: cuius regio, eius religio.
Durante esses tempos, os grupos religiosos minoritários não têm escolha a não ser argumentar pela pluralidade religiosa como uma questão de auto-sobrevivência. Mas, mesmo em tempos menos estressantes, é fundamental valorizar o pluralismo, que eleva as vozes minoritárias e garante uma sociedade diversificada, onde diferentes vozes e crenças estão no mesmo pé de igualdade.
Quando uma ideologia política singular, como a ideologia islâmica do AKP, se entrincheira e invade as arenas da educação e da política públicas, surge uma possibilidade perigosa: seus líderes, confortáveis no poder, não verão mais a necessidade do pluralismo, que é a semente de uma sociedade normal e saudável. Essa ordem precisa ser lembrada de uma possível nova era das trevas.
A necessidade de estrelas fixas, de certeza no meio de nossas tênues vidas em um planeta imprevisível, é real e compreensível. Líderes políticos e religiosos que podem empacotar e transmitir verdades absolutas encontram um público receptivo, mas não criam sociedades saudáveis. Um movimento como o Hizmet, com sua abertura ao empreendimento humano contemporâneo, pesquisa, educação, democracia e diversidade, ameaça tal rigidez. Precisamos pensar em uma expressão do Islã como o movimento Hizmet faz: com apoio a um cardápio completo de pluralismo, liberdades democráticas e constitucionais, direitos humanos universais e diversidade religiosa.
Essas crenças são exemplificadas pelo Hizmet, um movimento social polimórfico descentralizado, que em menos de trinta anos fez contribuições significativas para a paz intercomunitária e nacional, o diálogo inter-religioso, o desenvolvimento econômico e a educação. Essas contribuições são evidentes nas atividades, pesquisas, plataformas e influência criativa do Movimento no Reino Unido e no mundo. Em um momento de ansiedade e desânimo, o Hizmet representa uma "Caravana de Esperança", e não um trem do desespero.
Referências
- Bruce, Steve. 1996. Religion in the Modern World: From Cathedrals to Cults, Oxford: Oxford University Press.
- Cesari, Jocelyne. 2004. When Islam and Democracy Meet, London/New York: Palgrave Macmillan.
- Citlak, M. Fatih & Bingul, Huseyin. 2007, Rumi and his Sufi Path of Love. Istanbul/New York: Tughra Books.
- Fenn, Richard K. 2009. Key Thinkers in the Sociology of Religion. London: Continuum International Publishing Group.
- Harris, Harriet A. 2004. “Fundamentalisms” in " Encyclopedia of New Religions," Partridge, Christopher Oxford, Lion Publishing.
- Ramadan, Tariq. Western Muslims and the Future of Islam Oxford, Oxford University Press. 2004.
O Rev. Dr. Ian G. Williams ensina e supervisiona a pesquisa em Estudos Islâmicos no Instituto Markfield de Ensino Superior / Newman University, Reino Unido.
Este artigo foi publicado pela primeira vez na edição especial da Fountain Magazine © Blue Dome Press
Fonte: The Hizmet Movement of Fethullah Gülen and the Common Good – A Perspective from the UK
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